(In)segurança jurídica, anti-isonomia e violação de princípios constitucionais tributários a partir da modulação de efeitos imposta no julgamento do Tema 1.079 do STJ
Por ACI: 23/02/2025
O Código de Processo Civil, em seu art. 1.036, prescreve que, sempre “que houver multiplicidade de recursos extraordinários ou especiais com fundamento em idêntica questão de direito...”, haverá afetação do(s) recurso(s) ao rito dos repetitivos, devendo a sistemática prevista no código ser observada.
Ao leitor, é importante esclarecer que o recurso afetado pelo rito dos repetitivos será julgado de acordo a sistemática prevista no Código de Processo Civil e o tribunal, seja, o STJ e/ou o STF, definirá uma tese a respeito do tema submetido a julgamento, e a tese firmada deverá ser aplicada a todos os demais casos (processos) em que se discute idêntica questão de direito.
Em outras palavras, os processos afetados pelo rito dos repetitivos representam um grupo de recursos que apresentam discussão de teses coincidentes.
A sistemática de julgamento ora abordada tem como objetivo “concretizar os princípios da celeridade na tramitação de processos, da isonomia de tratamento às partes processuais e da segurança jurídica”[1].
Em 18/12/2020, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), também chamado de Tribunal da Cidadania, afetou dois recursos ao rito dos repetitivos (Tema 1079), cuja questão submetida a julgamento visava definir se:
“(...) o limite de 20 (vinte) salários-mínimos é aplicável à apuração da base de cálculo de "contribuições parafiscais arrecadadas por conta de terceiros", nos termos do art. 4º da Lei n. 6.950/1981, com as alterações promovidas em seu texto pelos arts. 1º e 3º do Decreto-Lei n. 2.318/1986.”[2]
Em razão da afetação dos recursos ao rito dos repetitivos, o STJ, em observância às peculiaridades da sistemática de julgamento, determinou a suspensão nacional de todos os processos que apresentassem discussão sobre questão idêntica, de acordo com o art. 1.036, § 1º do Código de Processo Civil.
Posteriormente, realizado o julgamento, foi fixada a seguinte tese pelo órgão julgador:
i) o art. 1° do Decreto-Lei 1.861/1981 (com a redação dada pelo DL 1.867/1981) definiu que as contribuições devidas ao Sesi, ao Senai, ao Sesc e ao Senac incidem até o limite máximo das contribuições previdenciárias;
ii) especificando o limite máximo das contribuições previdenciárias, o art. 4°, parágrafo único, da superveniente Lei 6.950/1981, também especificou o teto das contribuições parafiscais em geral, devidas em favor de terceiros, estabelecendo-o em 20 vezes o maior salário mínimo vigente; e
iii) o art. 1°, inciso I, do Decreto-Lei 2.318/1986, expressamente revogou a norma específica que estabelecia teto limite para as contribuições parafiscais devidas ao Sesi, ao Senai, ao Sesc e ao Senac, assim como o seu art. 3° expressamente revogou o teto limite para as contribuições previdenciárias;
iv) portanto, a partir da entrada em vigor do art. 1°, 1, do Decreto-Lei 2.318/1986, as contribuições destinadas ao Sesi, ao Senai, ao Sesc e ao Senac não estão submetidas ao teto de vinte salários.
No mérito, o STJ definiu que as contribuições parafiscais arrecadadas por conta de terceiros (Sesi, Senai, Sesc e Senac) não estão submetidas ao limite de 20 (vinte) salários-mínimos. Contudo, no referido julgamento, a partir do específico quadro jurisprudencial sobre a matéria, no próprio STJ, foi imposta a modulação de efeitos da tese firmada, nos seguintes termos:
III – Proposta a superação do vigorante e específico quadro jurisprudencial sobre a matéria tratada (overruling), e, em reverência à estabilidade e à previsibilidade dos precedentes judiciais, impõe-se modular os efeitos do julgado tão-só com relação às empresas que ingressaram com ação judicial e/ou protocolaram pedidos administrativos até a data do início do presente julgamento, obtendo pronunciamento (judicial ou administrativo) favorável, restringindo-se a limitação da base de cálculo, porém, até a publicação do acórdão.
Em outras palavras, o STJ, ao reconhecer que a tese firmada acabou superando o entendimento jurisprudencial até então vigorante, estabeleceu que as empresas que ingressaram com ação judicial e/ou protocolaram pedidos administrativos até a data do início do julgamento do mérito do recurso submetido ao rito dos repetitivos e que obtiveram pronunciamento favorável (na via judicial ou administrativa) terão direito, até a publicação do acórdão, de apurar as contribuições parafiscais com base no limite dos 20 (vinte) salários-mínimos.
Sem perder de vista que o objetivo da sistemática dos recursos submetidos ao rito dos repetitivos é a concretização dos princípios da celeridade na tramitação de processos, da isonomia de tratamento às partes processuais e da segurança jurídica, na modulação de efeitos imposta pelo STJ, inegavelmente, não foram levados em consideração princípios constitucionais tributários caros aos contribuintes.
Ao condicionar o direito de apurar as contribuições parafiscais até o limite de 20 (vinte) salários-mínimos apenas às empresas que ingressaram com ação judicial e/ou protocolaram pedidos administrativos até a data do início do julgamento de mérito e que obtiveram pronunciamento (judicial ou administrativo) favorável, o Tribunal da Cidadania impôs tratamento desigual às empresas que se encontravam e ainda se encontram na mesma situação.
Isso porque centenas de contribuintes, confiando e acreditando no Poder Judiciário, especificamente em relação ao quadro jurisprudencial desenhado no STJ, ingressaram com a ação judicial a fim de ver reconhecido o direito de recolher as contribuições parafiscais, observado o teto de 20 (vinte) salários-mínimos.
Ocorre que centenas de contribuintes que ingressaram com a ação judicial antes do início do julgamento do mérito dos recursos afetados ao rito dos repetitivos não obtiveram o aludido pronunciamento favorável, justamente em razão da determinação do STJ para suspensão nacional de todos os processos que apresentassem discussão idêntica, com base no Código de Processo Civil, uma vez que, assim que ajuizadas, as ações eram suspensas/sobrestadas, em cumprimento à determinação do STJ.
A condicionante estabelecida na modulação de efeitos, especificamente em relação à existência de “pronunciamento favorável”, reflete clara e inequivocamente na violação do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança (art. 5º, XXXVI da CF/88), do princípio da isonomia tributária (art. 150, inciso II da CF/88), do princípio da capacidade contributiva (art. 145, § 1º da CF/88) e do princípio da livre iniciativa e da livre concorrência (art. 170 da CF/88), no mínimo.
Não bastasse isso, os contribuintes que não obtiveram o referido “pronunciamento favorável” em suas ações amargam, por ora, com a retomada dos processos que até então se encontravam suspensos para julgamento e aplicação da tese firmada pelo STJ, tendo em vista que o Código de Processo Civil assim determina, independentemente do trânsito em julgado (art. 1.040, inciso III, do CPC).
Por ora, cumpre observar o desfecho do recurso repetitivo no STJ, considerando que a União (Fazenda Nacional) apresentou Embargos de Divergência, nos quais aborda o conceito de “jurisprudência dominante” e sua amplitude para fins de modulação de efeitos e, oportunamente, acompanhar, se admitido, o julgamento do Recurso Extraordinário interposto naquele processo pelo contribuinte.
Nos processos individuais que tiveram o andamento retomado, cabe trabalhar e, com os recursos cabíveis, demonstrar que os critérios estabelecidos na modulação de efeitos violam caros princípios constitucionais tributários e defender a necessidade de manutenção do sobrestamento dos processos que apresentam a mesa controvérsia, até o trânsito em julgado dos recursos submetidos ao rito dos repetitivos.
Disso todo, ainda, ficam as seguintes reflexões:
a) Sob a perspectiva da previsibilidade e calculabilidade do direito e, partindo da premissa de que a jurisprudência do STJ, neste caso, era favorável ao contribuinte, tanto que o próprio STJ, ao reconhecer a alteração do quadro jurisprudencial propôs a modulação de efeitos, não estaria ele, o STJ, promovendo insegurança jurídica, inobservando a proteção da confiança e estimulando o próprio contencioso?
b) Sob a perspectiva da segurança jurídica como fato, ao ingressar com a ação judicial, antes do início do julgamento do mérito dos repetitivos e, considerando e suscitando o quadro jurisprudencial do STJ, é razoável que o contribuinte não obtenha o direito almejado em razão da inexistência de pronunciamento favorável na sua ação individual, a partir do critério adotado pelo STJ na modulação de efeitos imposta?
c) Partindo da premissa de que o objetivo da sistemática do rito dos repetitivos é concretizar os princípios da celeridade na tramitação de processos, da isonomia de tratamento às partes processuais e da segurança jurídica, a exigência de “pronunciamento favorável” inserida na modulação de efeitos imposta não está a conferir tratamento anti-isonômico aos contribuintes que ingressaram com a ação judicial antes do julgamento de mérito, mas não obtiveram o aludido pronunciamento favorável?
d) Com exceção da redação do §3º do art. 927 do CPC e do art. 27 da Lei 9.868/99, o ordenamento jurídico é omisso em relação à prática de modulação de efeitos pelas Cortes Extraordinárias. A partir disso, qual a responsabilidade do julgador ou do órgão colegiado na formação do precedente (à brasileira), considerando os critérios por eles adotados na modulação? Pode o julgador ou o órgão colegiado estabelecer critérios que contrariem a Constituição Federal?
e) Considerando que a norma (art. 1.040, inciso III, do CPC) determina a retomada dos processos que estavam suspensos, a partir da publicação do acórdão paradigma (leia-se - o acórdão resultante do julgamento dos processos submetidos ao rito dos repetitivos) e, considerando que os critérios adotados pelo STJ na modulação de efeitos violam princípios constitucionais tributários, a alegação e demonstração da violação dos princípios constitucionais não seria suficiente para se determinar a manutenção da suspensão do processo até o trânsito em julgado dos recursos submetidos ao rito dos repetitivos?
f) Nos processos individuais, ajuizados antes do julgamento de mérito dos recursos afetados pelo rito dos repetitivos, que tiveram o seu prosseguimento retomado, porém, nos quais não houve pronunciamento favorável, e sendo demonstrada a violação dos princípios constitucionais tributários na modulação de efeitos, o julgador ou o órgão colegiado está adstrito a aplicação da tese firmada pelo STJ, ou, reconhecendo a violação denunciada, deve conceder o direito ao contribuinte para que observe o limite de 20 (vinte) salários-mínimos quando da apuração das contribuições parafiscais?
g) Nos processos afetados pelo rito dos repetitivos, não há elementos suficientes para se conferir efeito suspensivo ao acórdão paradigma (art. 43 da Recomendação 134 do CNJ), de modo a evitar grave risco de ofensa à isonomia?
h) Ante a omissão da legislação sobre a prática de modulação de efeitos, qual o reflexo da Recomendação 134 do CNJ, mais especificamente os arts. 43 e 44?
i) O fato de o acórdão paradigma (do STJ – art. 1.040 do CPC) ser publicado, permite concluir que dele não se pode recorrer ao STF, desde que, evidentemente, enquadrado o cabimento na questão constitucional?
j) O acordão paradigma (do STJ), fruto da afetação ao rito dos repetitivos, padecendo de violação constitucional, cumpre com o objetivo de concretizar o princípio da segurança jurídica e da isonomia tributária?
Inúmeras outras reflexões podem ser feitas a partir do julgamento do Tema 1.079 do STJ, que é apenas um caso que nos mostra a profundidade e a complexidade que reclama o tema, especialmente se abordado sob a existência de um sistema de precedentes que muitos defendem existir, no qual, como visto, os tribunais dizem o que é o direito, sem olhar a Constituição Federal.
Rodrigo Krummenauer Vieira - Advogado
SNA Advogados Associados
[1] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Precedentes/informacoes-gerais/recursos-repetitivos
[2]https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=1079&cod_tema_final=1079